Pessoas com deficiência, idosos e cuidadores: a nova relação trabalhista ameaça os dois lados
Izabel Maior*
Por
criação e tradição familiares sempre remunerei corretamente as pessoas que me
prestam serviços domésticos, pois se tratam de trabalhadores assalariados como
eu, sempre com carteira assinada no valor verdadeiro, INSS, férias acrescidas
de um terço e 13º salário. Por saber que o trabalho deles contribuiu para minha
maior dedicação aos estudos e à minha carreira profissional, procurava
compartilhar algum adicional conseguido. Essa é prática de relações
trabalhistas na qual acredito.
No
momento, minha imensa preocupação se assenta sobre os cálculos que estou
tentando fazer e absorver. As pessoas idosas, pessoas com deficiência e outras,
que precisam de cuidadores para sobreviver e viver com dignidade, autonomia e
independência, foram esquecidas com a nova ordem, como infelizmente acontece.
Esses cidadãos não existem em nenhum artigo, parágrafo ou inciso da nova
legislação. Adeus equiparação de oportunidades, pois sabemos que o elemento de
despesa que mais sobrecarrega o custo adicional da deficiência é a contratação
dos serviços dos cuidadores.
Em média,
para não haver exploração do trabalhador doméstico e do cuidador, uma pessoa
que necessita de 24 horas de atenção para as atividades da vida diária como
alimentação, asseio, banho e acompanhamento em outras tarefas, contrata duas a
três pessoas que se revezam em sua casa. De repente, a maneira como a medida
historicamente justa foi tomada desconheceu as consequências para um grupo em
desvantagem. Foram alteradas as regras de contratos existentes e toda a
viabilidade de receber o cuidado. Nas contas a serem feitas, de um lado estão
aposentadorias, pensões e salários minguados dos “patrões dependentes”. O
mercado de trabalho no Brasil rejeita trabalhadores com deficiência ou os
contrata, ilegalmente, por salários abaixo dos demais. Esses “patrões” não
podem assumir as tarefas dos cuidadores, justamente porque os cuidadores
existem para lhes atender, com dignidade para as duas partes, naquilo que é
básico: ir ao banheiro (que não tem hora marcada), receber alimento e um copo
de água e apoio em atividades de estudo, trabalho e lazer. Caso a assistência
do cuidador ultrapasse, mesmo que em poucos minutos, as oito horas diárias, já
serão horas extras, adicional noturno e tudo mais. Mesmo no período diurno, se
a pessoa com deficiência ou a idosa não conseguir “se virar” durante o
intervalo de descanso do cuidador, a lei não irá socorrê-las e mesmo o cuidador
que vier em seu auxílio estará infringindo a lei. Na nova empresa-casa as
regras são as do cartão de ponto. Por quê?
Até aqui,
tanto para mim, pessoa com deficiência, servidora pública, que precisa de cuidador,
como para minha sogra de 92 anos, pensionista federal, portanto ambas com
recursos que não acompanham o reajuste do mínimo salário desse país e a
inflação, teremos de pensar imediatamente em outra forma de existir que não
seja indecente. Com a nova equação, não fecham os cálculos para manter o
emprego dos cuidadores e a nossa sobrevivência. Se nos transformássemos em
empresas lucrativas, aí sim, a carga de direitos trabalhistas estaria
condizente.
Meu ponto
é que não se trata de usurpar os direitos conquistados tão tardiamente pelos
trabalhadores domésticos. O que percebo como inadiável é equilibrar as relações
do trabalho de uns com o “capital” finito de outros, essencialmente
quando são idosos e pessoas com deficiência, os quais não se caracterizam por
ter rendimentos altos nem serem exploradores de ninguém. A alternativa será a
institucionalização dessas pessoas em casas de repouso e abrigos? Não seria
mais humano e solidário aproveitar o debate e resgatar aqueles que não
conseguem “pagar” de forma alguma?
Sem a
mediação do Estado e da sociedade, que não pensaram no caso de cuidadores e
naqueles que dependem de sua presença, o cobertor curto vai desfavorecer os
dois lados. É urgente a instituição de política pública que ofereça serviços de
cuidadores e outras boas alternativas. Com a palavra os órgãos de promoção dos
direitos das pessoas idosas e das pessoas com deficiência.
Referências:
EM nº 72, de 2 de abril de 2013, disponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc72.htm,
acesso em 08/04/2013.
*Médica
fisiatra e docente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Consultora em inclusão social, políticas públicas e acessibilidade.
Foi coordenadora da CORDE e Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da
Pessoa com Deficiência de 2002 a 2010.
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