Tradição indígena faz pais tirarem a vida de crianças com deficiência física.
A prática acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil. Uma tradição comum antes mesmo de o homem branco chegar ao país.
https://www.youtube.com/watch?v=CCFqtQ64YHA
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Um assunto da maior importância: o direito à vida. Você acha certo
matar crianças recém-nascidos por causa de alguma deficiência física?
Pois saiba que isso acontece noBrasil e não é crime. A Constituição, nossa lei
maior, assegura a grupos indígenas o direito à prática do infanticídio, o
assassinato de bebês que nascem com algum problema grave de saúde.
Para os índios, isso é um gesto de amor, uma forma de proteger o
recém-nascido, mas tem gente que discorda.
Um projeto de lei que pretende erradicar o infanticídio já foi
aprovado em duas comissões na Câmara Federal e agora vai para votação no
plenário.
Do outro lado, os antropólogos defendem a não interferência na
cultura dos índios. Os repórteres do Fantástico foram investigar essa questão
sobre a qual pouco se fala. E descobriram que a morte desses recém-nascidos
mudou para pior o mapa da violência no Brasil.
A cidade mais violenta do Brasil fica no interior do estado de
Roraima. Chama-se Caracaraí e tem só 19 mil habitantes.
De acordo com o último Mapa da Violência, do Ministério da Justiça, em um ano, 42 pessoas foram
assassinadas por lá. Entre elas, 37 índios, todos recém-nascidos, mortos pelas
próprias mães, pouco depois do primeiro choro.
A partir de uma porteira, o Fantástico entrou na terra dos
ianomâmis, uma área de 9,6 milhões de hectares, maior do que Portugal. Lá,
vivem 25 mil índios em 300 aldeias numa floresta inteiramente preservada.
O filho de uma mulher ianomâmi vai fazer parte da próxima
estatística de crianças mortas logo após o nascimento. Há duas semanas, ela
começou a sentir as dores do parto, entrou na floresta sozinha e horas depois
saiu de lá sem a barriga de grávida e sem a criança.
Os agentes de saúde que trabalham lá disseram, sem gravar, que
naquela noite aconteceu mais um homicídio infantil, o infanticídio.
O infanticídio indígena é um ato sem testemunha. As mulheres vão
sozinhas para a floresta. Lá, depois do parto, examinam a criança. Se ela tiver
alguma deficiência, a mãe volta sozinha para a aldeia.
A prática acontece em pelos menos 13 etnias indígenas do Brasil,
principalmente nas tribos isoladas, como os suruwahas, ianomâmis e kamaiurás.
Cada etnia tem uma crença que leva a mãe a matar o bebê recém-nascido.
Criança com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou
fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados dependendo da tribo e
acabam sendo envenenados, enterrados ou abandonados na selva. Uma tradição
comum antes mesmo de o homem branco chegar por lá, mas que fica geralmente
escondida no meio da floresta.
O tema infanticídio ressurge agora por ter se destacado no Mapa da
Violência 2014, elaborado com os dados de dois anos atrás.
O autor do levantamento feito para o Ministério da Justiça, o
pesquisador Júlio Jacobo, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais,
não tinha ideia da prática.
“E aí, então, comecei a pesquisar efetivamente com as certidões de
óbito. Registravam que crianças de cor ou raça indígena, de 0 a 6 dias de idade. E
começamos a ver que realmente era uma cultura indígena meio não falada, meio
oculta”, diz o pesquisador.
O secretário de Segurança Pública de Roraima, Amadeu Soares, explica por que o seu estado
aparece, pela primeira vez, entre os mais violentos do Brasil.
Fantástico: Por que no ano de 2012 teve essa
evolução, esse número tão grande?
Amadeu Soares: Porque foi o ano que a Secretaria Especial
começou a fazer o trabalho de registro desses infanticídios.
E foi assim que Caracaraí, no interior de Roraima, se transformou
no município mais violento do Brasil. São 210 homicídios para cada 100 mil
habitantes. A média nacional é 29 homicídios para cada 100 mil habitantes.
Pituko Waiãpi é um sobrevivente. Ele nasceu há 37 anos numa aldeia
waiapi, localizada no interior do Amapá. Tinha paralisia infantil e estava
condenado ao sacrifício.
“A minha família não aceitava por causa da deficiência. Então, a
Funai me tirou de lá”, conta.
O garoto cresceu entre os homens brancos e, aos sete anos, foi
levado de volta para a tribo.
“Uma assistente social não entendia do costume da aldeia. Ela não
sabia que ele não podia mais voltar e o mandou de volta”, conta Silvia Waiãpi,
irmã de Pituko.
O garoto vivia carregado pela mãe, pai ou irmão mais velho.
“E aí um dia minha mãe cansou de me carregar e deu para o meu pai.
Quando foi na hora de atravessar o rio, meu pai começou a ameaçar que eu não
servia para nada, que eu merecia ser morto. A minha mãe escutou isso e gritou
que não era para ele fazer isso comigo”, conta Pituko.
“A minha mãe o deu para um dentista e a única palavra que ele sabia
falar em português era: ‘Embora. Embora. Embora’”, diz a irmã.
Ele só voltou a ver os pais quando tinha 21 anos.
“A minha mãe sentou do meu lado e disse: ‘Meu filho, tu lembra
daquele tempo que aconteceu?’. Eu falei: ‘Lembro’. Aí ela perguntou: ‘Você tem
raiva dele?’. ‘Eu, não. Eu gosto do meu pai’. Isso é cultura de vocês. Quem
sabe vocês estavam fazendo o certo e eu não estava sofrendo mais”, conta
Pituko.
“Como é que é carregar um deficiente físico nas costas sem
cadeiras de rodas? No meio do mato?”, comenta a irmã de Pituko.
A irmã de Pituko explica: para o seu povo, o infanticídio não é um
ato cruel.
“Era um ato de amor. Amor e desespero. Porque você não quer que um
filho seu continue sofrendo. Você quer que ele sobreviva, mas não se não há
como?”, diz ela.
“Não se pode atribuir a isso qualquer elemento de crueldade. Se
uma pessoa começa já no nascimento conter deformações físicas ou incapacidades
muito grandes, você vai ter sempre em si um marginal”, avalia o antropólogo
João Pacheco.
Na visão do antropólogo, este garoto é um exemplo do que seria um
marginal na comunidade indígena. Ele sofre de um problema neurológico.
“Essa criança nasceu, segundo informações, sem nenhum sinal de
qualquer tipo de deficiência. Eles não rejeitaram ela, mas ao mesmo tempo ela
não fica como as outras crianças. Fica mais escondidinha”, explica Tiago
Pereira, enfermeiro da Secretaria de Saúde Indígena.
Por não ter percebido a deficiência, a mãe deu de mamar ao filho.
Esta é uma cena da maior importância na vida de um pequeno
ianomâmi. Quando a mãe amamenta o filho, é como se tivesse dando a ele a
certidão de nascimento, é que ele está sendo aceito por ela e pela comunidade.
Os índios acreditam que só durante esse ritual o bebê se torna um
ser vivo e, graças a essa primeira mamada, Kanhu Rakai, filha de Tawarit, está
viva hoje.
“Se tivesse anotado de pequeno, poderia estar enterrado”, afirma
Tawarit Makaulaka Kamaiurá, pai de Kanhu Rakai.
Quando nasceu, a família, que faz parte da etnia kamayurá, não
notou que Kanhu Rakai desenvolveria qualquer problema.
“Ela nasceu normal. Depois de cinco anos, ela começou a ir
enfraquecendo mais”, conta Tawarit.
Kanhu Rakai tinha distrofia muscular progressiva, uma doença
degenerativa que dificulta cada dia mais os movimentos da garota, e os pais se
sentiam pressionados pela comunidade para matar a criança.
“A aldeia não manda. Pode mandar, mas só que quem decide, eu e
ela, é a gente que decide”, diz Tawarit.
E eles decidiram se mudar para Brasília.
“Para mim, enterrar as crianças é feio, é muito feio”, afirma
Tawarit.
A solução para impedir a morte de bebês indígenas não é simples.
Quem vive próximo ao problema, sabe disso. João Catalano é o coordenador geral
da Frente de Proteção dos Índios Ianomâmis, da Funai.
“A gente tem que entender o ambiente em que eles estão inseridos.
Aqui a gente está falando da maior floresta tropical do mundo. A maior parte
das regiões só chega de avião”, diz Catalano.
O secretário de Segurança Pública de Roraima aponta outra
limitação para agir: “A Funai acompanha, estuda e analisa todas essas questões
culturais dos povos indígenas. E o estado tem essa limitação de apenas fazer o
registro e o atendimento no caso de óbito”.
Várias vezes, enquanto esta reportagem estava sendo feita,
tentamos falar com a direção da Funai, a Fundação Nacional do Índio. Ela não
quis falar com o Fantástico sobre esse assunto.
E o que diz a lei brasileira sobre o infanticídio indígena? O
artigo 5º da Constituição garante a todos o direito à vida.
O jurista José Afonso da Silva, especialista em direito
constitucional, faz uma ressalva sobre as exceções dentro da Constituição.
“Ela reconhece a cultura indígena, os costumes indígenas, as
tradições indígenas”, observa o jurista.
Então, diante da Constituição do Brasil, não há nada condenável no
ato da mãe índia que mata o filho bebê.
O deputado federal Henrique Afonso, do PV do Acre, apresentou um
projeto de lei indicando como o estado pode trabalhar para intervir na questão.
“Esse projeto, o objetivo é erradicar o infanticídio no Brasil”, diz Henrique
Afonso.
Ele prevê, por exemplo, a criação de um Conselho Tutelar Indígena,
que teria autonomia para determinar qual medida deve ser adotada em cada caso.
O projeto ainda não foi colocado em votação no Congresso, mas já é criticado.
“Não há como executar essa lei a não ser com violência, que é
desaconselhável. E a própria Constituição repudiaria isso”, comenta o jurista
José Afonso da Silva.
“Eu não posso imaginar que esse seja um projeto realmente
humanitário. Então, nesse sentido, os antropólogos têm se manifestado sempre
contra”, diz o antropólogo João Pacheco.
Para os antropólogos, a solução seria o diálogo.
Uma saída bem sucedida encontrada pelo técnico de enfermagem da
Secretaria Especial de Saúde Indígena doMinistério da Saúde, Charles Sheiffer. Conversando, ele
conseguiu impedir a morte de um bebê indígena.
“Eu estava no posto de saúde mais ou menos 5h20 e, de repente, eu
escutei uma batida na porta do posto. A mãe mandou um dos filhos dela me chamar
para poder mostrar essa criança. Cheguei lá e a criança estava na grama já com
placenta e tudo. E fiquei com essa criança mais ou menos uns três dias”, conta
Sheiffer.
O pai já tinha outros três filhos. E acreditava que não tinha
condição de criar mais um bebê.
“Até que o pai se convenceu da minha atitude. E a mãe também
queria a criança. De toda forma, ela queria. E aí quando ela deu a primeira
mamada... Pronto! A criança estava livre”, lembra Sheiffer.
Silvia se formou em fisioterapia, é tenente no Exército e reclama
da falta de estrutura e saúde dada a esses povos.
“Falta de medicação, falta de enfermeiros, técnicos, porque os
poucos que têm estão sobrecarregados. Então, dizer que o índio está fazendo o
infanticídio é muito fácil. Mas se tivesse estrutura, eu duvido que isso
aconteceria. Eu falo isso porque meu irmão, o Pituko, é tetraplégico, ele não
teria nenhuma condição de sobrevivência dentro da aldeia, mas aqui ele hoje é
um pintor. Ele só mexe a cabeça e o pescoço, e ele pinta, e ele escreve apenas
com a boca”, conta Silvia.
Hoje Pituko é um orgulho para a sua aldeia. Agora, os waiãpis
descobriram que existe outro caminho para crianças que nascem com deficiência.
“Eu quebrei os preconceitos sobre pessoas com paralisia infantil.
Eu tenho uma sobrinha que tem dois filhos que são deficientes”, diz Pituko.
“E hoje meu pai entende isso. Hoje, nós vemos isso no olhar dele.
Um olhar de amor. Um olhar de carinho. E quando nós vamos, ele chora, porque
fazia muito tempo que ele não nos via. E ele diz em português: saudade”, conta
Silvia.
A mesma saudade que Muwaji tem do seu povo. Ela é de uma tribo
isolada do Amazonas, a suruwaha.
Quando deu a luz ao seu filho, estava sozinha no meio da floresta.
Percebeu que a criança não abria as mãos e tinha as pernas cruzadas e duras.
Muwaji começou a criar a filha mas o irmão insistia que ela devia matar a bebê.
“Meu irmão falou: ‘Dá o veneno. Eles vão matar’. ‘Não quero
matar’”, conta Muwaji.
Para salvar a criança, Muwaji fugiu da sua tribo. Vive com a filha
de oito anos em Brasília e nunca mais viu a família.
“Meu coração é triste, chora. Depois é alegre de novo”, diz.
Ela não vê meios de voltar para sua tribo e apenas canta quando
quer se sentir próxima a seu povo.
fonte: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html
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